PONTOS-CHAVE:

  • Atletas de endurance (resistência) apresentam risco para desidratação, já que os treinos e competições aumentam as taxas de suor por um maior período de tempo e a taxa de ingestão de líquidos ad libitum (à vontade) é normalmente menor que a taxa de suor. 
  • Enquanto muitas pesquisas examinaram o efeito da desidratação nos atletas de endurance ao longo do último século, ainda existem muitos debates na comunidade científica sobre os seus verdadeiros efeitos na performance. 
  • Os estudos que examinaram os efeitos da desidratação na performance de endurance (e outros tipos de exercício) podem ser, ao menos parcialmente, confundidos por: 1) não serem estudos “cegos”, levando à possibilidade de efeitos “placebo” e “nocebo” na performance, e 2) utilizarem métodos de desidratação desconfortáveis que podem influenciar na performance à parte de qualquer efeito da própria desidratação. 
  • Os estudos têm mostrado que é possível realizar o cegamento dos voluntários em relação ao seu estado de hidratação pela manipulação da ingestão de líquidos através da administração intravenosa (cateter venoso) e intragástrica (sonda nasogástrica) de solução salina, e que a última opção parece induzir respostas fisiológicas e perceptivas mais consistentes com os estados normais de desidratação e euhidratação (normohidratação). 
  • Estes estudos “cegos” demonstraram que a desidratação > 2% da massa corporal prejudicou a performance no cliclismo de endurance no calor, pelo menos quando os líquidos foram ministrados no trato gastrointestinal. Evidentemente, mais trabalhos são necessários para entender os outros tipos de exercícios e configurações ambientais, mas estes estudos respaldam o consenso geral em relação aos estudos não cegos sobre a desidratação.  
  • Um estudo relatou que certa habituação à desidratação é possível, sugerindo que se métodos de hidratação incômodos e não familiares aos indivíduos são utilizados nos estudos, a performance pode ser prejudicada, ao menos parcialmente, pelo método e não necessariamente pelo déficit corporal de líquidos. 

 

INTRODUÇÃO 

Muitas pesquisas focaram seus esforços na influência da hipohidratação ou desidratação nas respostas fisiológicas e de performance durante exercícios prolongados de endurance, com este tópico representando uma das questões mais antigas dentro da pesquisa científica em esportes, fisiologia do exercício e nutrição, datando de cerca de 100 anos ou mais. Apesar do grande número de pesquisas, ainda há muita controvérsia e divergência entre os pesquisadores em relação aos reais efeitos do estado de hidratação na performance. Muitas destas controvérsias e debates estão concentrados em como os resultados dos estudos científicos são incorporados nas diretrizes práticas de ingestão de líquidos para atletas. As diversas visões podem ser amplamente categorizadas em duas escolas de pensamento: aqueles que sugerem que a ingestão de líquidos durante o exercício deveria ser planejada e aqueles que sugerem que a ingestão deveria ser ad libitum ou guiadas pela sensação de sede (revisado em Kenefick, 2018). Evidentemente, é de vital importância a maneira como estes achados das pesquisas são incorporados em recomendações para os atletas e/ou para os profissionais de saúde da área, mas para um melhor embasamento destas recomendações, os estudos científicos nos quais elas são baseadas necessitam ser consistentes. 

O objetivo deste artigo do Sports Science Exchange é resumir brevemente o extensivo corpo da literatura científica, explorando a influência da hidratação no endurance, discutir o porquê de as limitações dos métodos utilizados nestes estudos apresentarem a possibilidade de restringir a solidez de seus achados, e finalmente descrever os resultados de um pequeno número de estudos recentes que tentaram corrigir estas limitações. Nós não iremos, neste artigo, abordar pontos específicos de como os atletas deveriam realizar a ingestão de líquidos durante o exercício, mas iremos focar na qualidade das evidências que explora se a desidratação tem efeitos na performance. Certamente, antes de entender como os atletas devem realizar a ingestão de líquidos, há a necessidade de se estabelecer, de maneira sólida, se a desidratação impede a performance em níveis experimentados por atletas. É importante também garantir um entendimento claro de parte da terminologia utilizada. A euhidratação se refere a quantidade de água corporal normal, mas poderia ser considerada como um estado de equilíbrio hídrico, enquanto a hipohidratação e a hiperhidratação se referem a novos estados fisiológicos de baixa e alta quantidade de água corporal, respectivamente. A desidratação na verdade se refere ao processo de perder água corporal, mas mesmo na literatura científica é frequentemente utilizada para se referir a um estado de baixa quantidade de água corporal e para maior clareza será utilizada neste contexto aqui.  

O BALANÇO HÍDRICO E OS EXERCÍCIOS DE ENDURANCE 

Apoiando a importância da ingestão de líquidos para a performance de endurance está o papel vital que a água corporal tem na saúde e bem-estar geral de atletas (e todos os seres humanos, por assim dizer). A água é a molécula mais abundante no corpo humano, representando ~60-70% da massa corporal da maioria dos atletas e é o nutriente perdido e consumido em maior quantidade a cada dia (Brouns et al., 1989). Na maioria dos indivíduos sedentários, o balanço hídrico é alcançado diariamente por meio da regulação fisiológica da produção de urina pelos rins para corresponder à ingestão de água, com a possibilidade de um equilíbrio concreto mesmo frente a diferentes quantidades de ingestão de água (Kavouras, 2019). Durante o exercício, a taxa metabólica (gasto de energia) aumenta substancialmente, com ~80% da energia sendo produzida como calor. Como consequência, a produção de suor aumenta para facilitar o resfriamento evaporativo (evaporação de suor pela pele), para atenuar o aumento na temperatura corporal. As perdas de suor usuais durante o treino ou competição de endurance variam em cerca de 1-2 l/hora, mas podem alcançar 3-4 l/hora em algumas populações com melhor condicionamento físico (Beis et al., 2012; Baker et al., 2016).  

A taxa de suor durante um determinado exercício irá depender de inúmeros fatores, mas em um atleta individual irá depender principalmente da intensidade do exercício, das condições ambientais (temperatura, umidade do ar, calor irradiado, etc.), das vestimentas utilizadas, e do grau de aclimatação ao calor. A natureza prolongada de muitos treinos de endurance e as configurações ambientais das competições significam que altas taxas de suor podem continuar por horas em cada ocasião, apresentando uma maior sobrecarga nos estoques corporais de água. Enquanto teoricamente é possível ingerir líquidos o suficiente para corresponder à perda de suor e prevenir a desidratação, a observação comum é de que muitos atletas (particularmente atletas de resistência) consumam menos líquido durante o exercício do que eles perdem pela transpiração (denominado de desidratação involuntária). Isto significa que ao longo de uma sessão de exercício, pode haver o aumento considerável da desidratação (Cheuvront & Haymes, 2001; Sharwood et al., 2004; Zouhal et al., 2011). Mesmo quando os atletas iniciam o exercício euhidratados, como seria esperado em eventos competitivos, a perda concreta de água durante o exercício prolongado significa que eles podem se tornar desidratados até o final do exercício, quando as habilidades de performance podem ser mais importantes (Hanley, 2014). Esta desidratação involuntária parece ocorrer mesmo em situações em que as bebidas estão livremente disponíveis durante o exercício. Em muitas configurações de exercícios de endurance (competições e treinamentos) pode ser logisticamente (exemplo, carregar líquido suficiente, disponibilidade inadequada de estações de líquidos etc.) ou fisiologicamente (exemplo, oferta de líquidos desde o trato gastrointestinal (GI) e conforto GI) desafiador obter a ingestão suficiente de líquidos para repor as perdas. 

Exercícios de endurance, portanto, representam uma situação na qual a desidratação provavelmente seja lugar-comum entre os atletas, tornando importante considerar as implicações para a performance de resistência, assim como atenuar os efeitos para esta população.

DESIDRATAÇÃO E PERFORMANCE NO EXERCÍCIO DE ENDURANCE

A esmagadora maioria dos estudos relata que a desidratação equivalente a mais de 2% da massa corporal leva a reduções significativas na performance e capacidade em exercícios de endurance, como refletido no posicionamento mais recente do Colégio Americano de Medicina Esportiva (ACSM) sobre o assunto (Sawka et al., 2007). Apesar de já terem se passado alguns anos desde este posicionamento, outros artigos mais recentes com revisão abrangente alcançaram de modo geral a mesma conclusão (Cheuvront & Kenefick, 2014). Há inúmeras alterações fisiológicas e perceptivas que ocorrem devido à desidratação durante o exercício e que causam uma cascata de efeitos, incluindo o volume plasmático reduzido (Sawka et al., 2015), redução do volume sistólico e do débito cardíaco (Montain & Coyle, 1992), redução da musculatura (Gonzalez-Alonso et al., 1998) e do fluxo sanguíneo cerebral (Trangmar et al., 2014), maior temperatura corporal (Sawka et al., 1985), maior utilização de glicogênio (Logan-Sprenger et al., 2013) e maior percepção de esforço (Funnell et al., 2019). Estes efeitos da desidratação fornecem muitos mecanismos plausíveis que provavelmente agem em conjunto para explicar a redução na performance de endurance na presença da desidratação (Figura 1). A redução no volume plasmático causada pela desidratação parece levar a consequências negativas na performance (Sawka et al., 2015) e o dano parece ser exacerbado pela exposição ao calor (Kenefick et al., 2010).

Figura 1: Os possíveis mecanismos pelos quais a desidratação prejudica a performance de endurance. CV, cardiovascular, RPE, índice de percepção de esforço (reproduzido de James et al., 2019, com permissão).        

Tradução da Figura:

Desidratação induzida pelo exercício

Volume do Plasma/ Osmolaridade do Plasma/↑ Sede /↓ Humor                           

↓ Função CV/↑ Temperatura Corporal / ↑ Utilização de Glicogênio Muscular

↑ RPE // Performance de Resistência Prejudicada 

Reduções na performance de endurance devido à desidratação são claramente evidenciadas por estudos do tipo crossover de laboratório e de campo (Sawka & Noakes, 2007; Cheuvront & Kenefick, 2014; James et al., 2019), mas dados provenientes de eventos competitivos de endurance parecem questionar a força destas evidências. Diversos estudos correlacionando a perda aguda de massa corporal (um sinônimo de desidratação) com o tempo para o término da atividade durante um evento de endurance, encontraram que uma maior perda de massa corporal está associada com um tempo de finalização mais rápido (Sharwood et al., 2004; Zouhal et al., 2011) e alguns interpretaram este dado como sendo a desidratação a responsável por produzir um menor tempo de término. Obviamente, associação não é uma causalidade, mas se especularmos, seria lógico supor uma conclusão oposta, onde o menor tempo de término é que resultaria em uma maior perda de massa corporal e maior desidratação. Corridas mais rápidas aumentam a produção metabólica de calor (e consequentemente, a taxa de suor) e significa que haverá menor tempo disponível para a ingestão de líquidos, assim como irá tornar esta ingestão de líquidos mais difícil devido às limitações práticas e do trato GI. Em consonância com isso, Dion et al. (2013) demonstrou que durante uma meia maratona em esteira, a velocidade de corrida foi positivamente correlacionada com a taxa de suor, mas não com a taxa de ingestão de líquidos, significando que à medida que a velocidade de corrida aumentou, a desidratação também aumentou.  

Embora estes dados de campo provavelmente não sugiram que a desidratação melhore a performance, as perdas de massa corporal > 5% para alguns dos finalistas mais rápidos em eventos de endurance reais podem levar a uma questão sobre se a desidratação por si só realmente prejudica a performance nestes eventos (Sharwood et al., 2004; Zouhal et al., 2011). No entanto, talvez seja inevitável que a desidratação aumente durante eventos competitivos de resistência nos atletas com bom condicionamento físico, já que em muitas situações, não há possibilidade de a taxa de ingestão de líquidos acompanhar o ritmo da taxa de suor. Como exemplo, dados da maratona de Dubai de 2009 (Beis et al., 2012) relataram que o vencedor da corrida (completando a maratona em 2:05:29 horas) teve uma taxa de suor estimada de 3,6 L/hora e ingeriu 1,7 L de líquido durante a corrida (~0,8 L/hora), apresentando aproximadamente uma redução de 9,8% na massa corporal ao longo da maratona. Evidentemente, manter a euhidratação ou mesmo restringir a desidratação em 2% na presença de tais taxas de suor é provavelmente impossível, mas isto não significa que a desidratação seja ergogênica. Estas observações levaram a alguns questionamentos sobre a validade dos estudos de intervenção (Sawka & Noakes, 2007), mas se um atleta que completa uma corrida de maneira rápida enquanto está consideravelmente desidratado, não significa que ele não teria completado a prova ainda mais rápido se estivesse menos desidratado. No entanto, há outras considerações metodológicas que podem significar que precisamos reexaminar os efeitos da desidratação na performance humana, e estas considerações serão abordadas nas seções seguintes. 

DESAFIOS E LIMITAÇÕES METODOLÓGICAS NO ESTUDO DA DESIDRATAÇÃO 

Recentemente, foi dado um foco particular aos métodos utilizados para avaliar os efeitos da desidratação na performance de exercícios de endurance. Assim como em qualquer estudo científico, os métodos específicos utilizados são de extrema importância na interpretação dos resultados. Contudo, até recentemente, diversas possíveis limitações metodológicas inerentes a quase todos os estudos que examinam a desidratação e o exercício de resistência foram, em grande parte, ignoradas. Na nossa opinião, há duas limitações principais que estão presentes nos estudos sobre desidratação que podem limitar a sua interpretação. Primeiramente, a inabilidade ou a falta de intervenções que apresentam o cegamento em relação à desidratação dos indivíduos, e em segundo lugar, a utilização de métodos incômodos e que não são familiares aos indivíduos para induzir a desidratação (James et al., 2019).

Limitações Metodológicas: Cegamento de Estudos. Nas pesquisas sobre nutrição esportiva (como em outros campos de pesquisa), o cegamento das condições é vital para reduzir as chances da presença de efeito placebo ou nocebo e para aumentar a confiabilidade nos resultados dos estudos (Betts et al., 2020). Em quase todas as áreas da pesquisa em nutrição esportiva, o cegamento dos estudos é um pré-requisito para a aceitação do estudo em um jornal científico. De fato, efeitos placebo são bem documentados na pesquisa em nutrição esportiva (Clark et al., 2000), e o fato de que muitos atletas acreditam que a desidratação prejudique a performance (Nichols et al., 2005) significa que os estudos sobre desidratação podem ser confundidos por falta de cegamento. Esta não é uma consideração pequena, já que a validade de quase 100 anos de pesquisa está em questão. Contudo, até recentemente, tentativas para “cegar” os indivíduos em relação ao seu estado de hidratação durante o exercício não foram realizadas. Até o momento, seis estudos efetivamente apresentaram o cegamento dos indivíduos em relação ao seu estado de hidratação para examinar a performance de resistência, nestes estudos foi utilizada a oferta de líquidos intravenosa (Adams et al., 2019; Cheung et al., 2015; Wall et al., 2015) ou intragástrica (Adams et al., 2018; Funnell et al., 2019 James et al., 2017) para manipular o estado de hidratação sem o conhecimento dos participantes. 

Diferentes resultados foram observados nestes estudos, o que provavelmente pode ocorrer devido aos diferentes métodos utilizados para manipular o estado de hidratação (veja James et al., 2019, para discussão detalhada). Wall et al. (2015) e Cheung et al. (2015) utilizaram o exercício realizado no calor para desidratar os indivíduos e manipularam o volume da reidratação intravenosa fornecida após, ou durante, uma pré-carga padronizada em atividade de ciclismo para produzir a euhidratação ou a desidratação de 2-3% da massa corporal anteriormente ao teste de tempo em ciclismo. Por outro lado, dois estudos posteriores do nosso laboratório (Funnell et al., 2019; James et al., 2017), utilizaram sonda orogástrica ou nasogástrica para ofertar o líquido diretamente ao estômago durante um teste com pré-carga padronizada em ciclismo. Semelhante aos outros dois estudos, nestes a manipulação da ingestão de água produziu a euhidratação ou desidratação de 2-3% da massa corporal anteriormente ao teste de tempo em ciclismo. No entanto, em contrapartida, ambos os estudos observaram danos significativos (8-11%) na performance de resistência com a presença de desidratação (Funnell et al., 2019; James et al., 2017) (Figura 2). Um terceiro estudo de Adams et al. (2018), utilizando o método intragástrico, também relatou dano na performance de resistência no ciclismo. Neste estudo, os autores também forneceram 25 ml de água a cada 5 minutos em ambos os testes de euhidratação e desidratação para conter a sede nos dois testes. Portanto, este estudo sugere que os efeitos da desidratação não são explicados pela sensação de sede percebida, mas é importante notar que não responde à questão sobre a sede afetar a performance ou não. No nosso ponto de vista, é provável que a sede tenha um papel importante, mas provavelmente ela seja apenas uma parte do cenário, já que as reduções na performance foram observadas quando a sede estava ausente. 

Figura 2: Os efeitos da desidratação com ~3% de perda de massa corporal na performance de endurance em ciclismo no calor em um grupo de indivíduos, com a presença de cegamento (painel da esquerda) e sem a presença de cegamento (painel da direita) às intervenções e objetivos do estudo. EU, euhidratação; DE, desidratação. (Reproduzido de Funnell et al., 2019, com permissão)

Tradução da Figura:

Tempo (s)

Grupo “cego”// Grupo “não-cego”

Nenhum destes estudos explorou os mecanismos específicos pelos quais a desidratação prejudica a performance, mas de maneira importante, eles começam a responder à questão sobre se a desidratação realmente prejudica a performance de resistência. Isto começa a criar um alicerce a partir do qual nós podemos construir uma sólida base de evidências para os efeitos da desidratação na performance atlética (apesar de ser limitada à performance de resistência nesse estágio). A questão é, por que existe uma diferença clara nos resultados? Os estudos que utilizam a reidratação intravenosa não mostraram danos na performance com a desidratação, enquanto aqueles utilizando a reidratação intragástrica sim. Evidentemente, as pesquisas realizadas desta forma não são maduras ainda, e mais estudos são claramente necessários para examinar ainda mais os verdadeiros efeitos da desidratação na performance de endurance. Contudo, é possível que os métodos específicos utilizados também influenciaram nos resultados observados. Os estudos utilizando a reidratação intravenosa omitem a interação do líquido com o trato gastrointestinal, que é a via normal pela qual o líquido entra no corpo humano. E talvez mais importante, seja que os estudos utilizando a reidratação intravenosa, até o momento, utilizaram solução salina isotônica para reidratar os indivíduos. Isto significa que a osmolaridade sérica elevada, que é um dos principais sinais regulatórios utilizados pelo corpo para perceber o estado de hidratação, estaria elevada também nos testes de euhidratação e de desidratação da mesma forma. Por outro lado, aqueles utilizando a reidratação intragástrica usaram a água como o líquido para reidratação, prevenindo o aumento na osmolaridade sérica, a desidratação intracelular, e a consequente cascata dos efeitos induzidos. Certamente, nenhum dos métodos é perfeito, mas parece que a reidratação intragástrica fornece um modelo que replica tanto as respostas fisiológicas quanto às perceptivas para a euhidratação através da ingestão oral de água, o que não foi possível (ainda) com a reidratação intravenosa. Provavelmente uma consideração importante para estes estudos “cegos” é que os estudos utilizando a reidratação intragástrica ofertaram certa quantidade de líquido (apesar de um pequeno volume) oralmente, o que sempre foi padronizado entre os testes (exemplo, o mesmo volume é oralmente ingerido nos testes de euhidratação e desidratação). A ativação dos receptores orofaríngeos através do ato de engolir os líquidos é possivelmente um passo importante no processo regulatório de líquidos (Figaro e Mack, 1997). Desta forma, pode ser que o ato de engolir o líquido e a consequente ativação dos receptores orofaríngeos sejam necessários para apresentar de maneira completa o benefício de uma hidratação maior (James et al., 2019). Resumindo, estes dados sugerem, portanto, que quando o estado de hidratação é manipulado de maneira consistente com o que os atletas de fato experienciam (quantidade e tipo de desidratação), a performance de endurance é prejudicada mesmo quando existe o cegamento dos atletas em relação ao seu estado de hidratação.  

Limitações Metodológicas: Métodos de Desidratação Incômodos e Não Familiares. Reais ou não, os efeitos da desidratação observados nos experimentos científicos podem ser confundidos por outro fator: o tipo de método utilizado para induzir a desidratação nos estudos. Quando se considera o tipo de método utilizado para induzir a desidratação, eles são não apenas evidentes, mas também atípicos em relação à rotina normal e práticas dos indivíduos, além de geralmente serem desconfortáveis por natureza. Os métodos comuns de desidratação utilizados na literatura envolvem a restrição prolongada de líquidos (≥ 24 horas), a restrição de líquidos combinada com a exposição ao calor e/ou exercícios, ou administração de diuréticos muito fortes (por exemplo, a furosemida). Nenhuma destas são experiências prazerosas e são dificilmente consistentes com a preparação ideal para a performance atlética. Desta forma, é possível que os métodos, ao invés da deficiência de líquido corporal, possam ser responsáveis ao menos por uma parte dos efeitos negativos da desidratação na performance. De relevância particular, são os estudos examinando a performance de endurance em eventos reais que relataram que atletas experientes e com bom condicionamento físico terminam e até ganham corridas com a presença de desidratação significativa (como determinado a partir da perda de massa corporal ao longo da corrida) (Beis et al., 2012; Sharwood et al., 2004; Zouhal et al., 2011). Embora a desidratação possa ser inevitável em algumas situações (como discutido anteriormente), é interessante considerar se estes atletas são mais capazes de tolerar a desidratação, bem como se isto é algo que eles sempre puderam fazer ou se está relacionado à sua experiência em treinos/competições. 

Poucas pesquisas estão disponíveis sobre este tópico, o que é surpreendente, dado a possível significância dos resultados na área da desidratação e performance. Esta falta de dados significa que é difícil fazer conclusões sólidas sobre o assunto. No entanto, o único estudo a explorar especificamente os efeitos da exposição repetitiva à desidratação relatou alguns resultados interessantes (Fleming & James, 2014). Neste estudo, a ingestão de líquidos foi manipulada por 24 horas (baixa vs. alta) e durante uma corrida com velocidade constante de 45 minutos para produzir a desidratação de ~2,5% de perda de massa corporal ou manter a euhidratação antes do teste de tempo de 5 km na esteira. Na primeira exposição à desidratação, foi observado um dano significativo (~6%) na performance, mas isto foi reduzido para um dano não significativo (~1%) na performance após 5 exposições à desidratação, apesar de ainda haver uma tendência (= 0,064) para um menor tempo no teste com desidratação. Todos os 10 indivíduos obtiveram melhor desempenho na presença da desidratação após terem se familiarizado com o estímulo desta desidratação (Figura 3), mas não houve diferenças no desempenho com euhidratação quando comparados antes e após as familiarizações com a desidratação. Embora poucos dados, além da performance, terem sido coletados, as alterações no Índice de Percepção de Esforço (RPE) espelharam aquelas da performance, enquanto a taxa cardíaca e respostas da transpiração foram semelhantes antes e após a familiarização. Isto sugere que os efeitos, pelo menos para 4 sessões, são improváveis de serem fisiológicos em natureza e mais prováveis de estarem relacionados com efeitos psicológicos. Evidentemente, mais estudos são necessários para confirmar estes achados e explorar os possíveis mecanismos envolvidos, mas estes dados sugerem que algum nível de habituação seja possível de acontecer e que a exposição repetitiva à desidratação pode significar que os atletas sejam mais capazes de tolerá-la. Para a maioria dos atletas de endurance, esta exposição repetitiva irá provavelmente acontecer durante o próprio treino e, desta forma, nenhum treinamento específico seria necessário, mas caso não aconteça, talvez algumas sessões de treinamentos específicos com foco na desidratação possam ser úteis para expor o atleta a níveis de desidratação esperados nas competições com o objetivo de atenuar os efeitos negativos na performance. As maiores implicações destes achados são a interpretação de pesquisas anteriores examinando a desidratação e performance. Dado que os voluntários dos estudos científicos são raramente familiarizados com o protocolo de desidratação utilizado, isto pode significar que em alguns estudos (talvez em ambientes com temperaturas amenas, em especial), alguns dos resultados relatados podem estar relacionados com o protocolo de desidratação especificamente, ao invés de somente com a desidratação de maneira isolada.  

Figura 3: Os efeitos da desidratação de ~2,5% na performance de endurance em corrida em ambiente com temperaturas amenas, antes (Pré) e após (Pós) a realização de quatro testes para familiarizar os indivíduos ao protocolo de desidratação. EU, euhidratação. (Reproduzido de Fleming & James, 2014, com permissão). 

Tradução da Figura: ∆ teste de tempo de 5km vs. EU// Pré / Pós                                               

CONCLUSÕES

Como em muitas áreas da pesquisa em nutrição esportiva, ainda há muito a aprender sobre como a hidratação influencia nos exercícios de endurance. Felizmente, este artigo destaca algumas das razões pelas quais precisamos considerar cuidadosamente as evidências que temos, especialmente no que se refere à performance, pois há inúmeras razões pelas quais podemos precisar ser mais cautelosos na interpretação de algumas das evidências disponíveis. Estudos mais recentes tentaram superar algumas das questões metodológicas, e desta forma, estamos mais perto de ter um entendimento mais preciso sobre se, e como, a desidratação prejudica a performance. Muito deste trabalho, ao menos atualmente, aponta na direção do consenso científico de maneira geral estar, em grande parte, correto. Até o momento, podemos dizer ao menos com certa confiança, que a desidratação > 2% da massa corporal (produzida pelo exercício e ingestão inadequada de líquidos) prejudica a performance de resistência no ciclismo, mesmo quando houve o cegamento dos indivíduos em relação ao seu estado de hidratação (Adams et al., 2018; Funnell et al., 2019; James et al., 2017). Além disso, como relatado por Funnell et al. (2019), as respostas da performance à desidratação/euhidratação não diferiram nos grupos que foram “cegos” ou “não-cegos” à intervenção. Esta é, em nossa visão, uma descoberta muito importante para a interpretação de pesquisas anteriores com foco na desidratação e performance. A implicação das questões metodológicas destacadas neste artigo é que os trabalhos anteriores que não apresentaram cegamento dos indivíduos em relação ao seu estado de hidratação podem ter sido equivocados. Contudo, os resultados de Funnell et al. (2019) demonstraram que o cegamento não foi relevante quando se considera a performance do ciclismo de endurance no calor em um nível de desidratação equivalente a ~3% da massa corporal, sugerindo que as pesquisas anteriores eram válidas. Além disso, embora apenas um estudo tenha sido realizado, este fato combinado com os dados de campo dos eventos competitivos sugerem que os atletas podem ser capazes de treinar para desenvolver uma tolerância à desidratação, embora isso não signifique que a desidratação melhore a performance. 

Certamente, existem algumas limitações nas conclusões que somos capazes de realizar atualmente, e também existem algumas lacunas no nosso entendimento atual. No momento, dados sólidos com a presença de cegamento apropriado são limitados à desidratação > 2% da massa corporal, exercícios de ciclismo e apenas em ambientes quentes em indivíduos do sexo masculino. De uma perspectiva ambiental e modo de exercício, esta é a configuração onde podemos esperar ver os maiores efeitos. Diferentemente do ciclismo (ao menos em uma bicicleta ergométrica em laboratório), correr requer que o atleta carregue sua própria massa muscular e desta maneira a perda de massa corporal associada com a desidratação pode atenuar alguns dos efeitos negativos. Portanto, pesquisas futuras devem buscar explorar os efeitos da desidratação de forma cega em corredores e em ambientes mais frios para confirmar se há um real efeito na performance em tais condições. Além disso, como na maioria das áreas da pesquisa em ciências esportivas e nutrição, os efeitos em mulheres também devem ser explorados, já que alterações na água corporal, ingestão de água e temperatura interna corporal ocorrem ao longo do ciclo menstrual e estudos futuros devem buscar entender seus efeitos relativos. 

RECOMENDAÇÕES PRÁTICAS 

  • Atletas de endurance devem estar cientes que a desidratação terá um efeito negativo em sua performance, mas que provavelmente há um alto grau de variabilidade no quanto a desidratação prejudicará sua performance. 
  • Os atletas devem se concentrar em dois principais objetivos em relação à sua hidratação. Primeiro, eles devem ter como objetivo iniciar o exercício bem hidratados, o que será alcançado pelo consumo adequado de água nos dias e horas que antecedem o evento/treino. Segundo, eles devem ter como objetivo minimizar a desidratação que se desenvolve durante o exercício. 
  • Se possível, os atletas devem manter a euhidratação (não perder mais que 1-2% da massa corporal). Contudo, deve-se reconhecer que em algumas situações isto simplesmente não será possível, e os atletas devem se concentrar em garantir que qualquer desidratação que possa desenvolver-se, seja minimizada.


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